Ultimas

Lucas Headquarters #218 – O herói de uma vida inteira: Obrigado, John Cena!!


E chegou o dia.


Chegou o dia que todos nós sabíamos que, mais ano, menos ano, ia chegar, sem nunca estarmos preparados para isso. Porque, se é verdade que um wrestler, mesmo nos seus cinquenta, e às vezes sessenta anos de idade, nunca se despede verdadeiramente dos ringues, há wrestlers para quem o fechar de um ciclo é uma coisa completamente sagrada.


Como eu disse há exatamente um mês, quando assinalava os vinte anos da trágica morte de Eddie Guerrero, o wrestling é uma miríade de coisas. Para uns, teatro. Para outros, cinema. Para quase todos, entretenimento. E, para uma pequena fatia, talvez ainda seja tão real como no primeiro dia em que demos de caras com este pequeno mundo.


Mas, tal como o wrestling é, para (quase) todos, entretenimento, estou certo de que para todos, mesmo para esses que pertencem à brigada do quase, o wrestling acaba por surgir na nossa vida e no nosso dia-a-dia como uma família que nos acolhe. Não é, por razões óbvias, a nossa família de sangue, mas é algo que, em certos casos, é muito mais perfeito do que isso.


É muito mais perfeito do que isso porque nos dá a conhecer seres humanos, com vidas, com rotinas, com desejos e vontades como todos nós, mas que pelas suas ações ou pelos valores que escolhem representar, acabam por atuar como um farol das nossas vidas, como a única coisa capaz de nos manter à tona da sanidade mental quando nós sentimos que atingimos o limite. E o mais extraordinário é que tudo o que nós temos que fazer para nos mantermos à tona dessa sanidade mental é ligar a televisão ou o computador e, simplesmente, observar. Ver. Admirar. E deixar que eles, naquela ténue mistura entre o que é real e o que é ficção, tratem do resto.


Já aqui falei de muitos wrestlers que, pela forma como o fizeram ou pela marca que deixaram na indústria ao longo de décadas, cumpriram perfeitamente com essa missão, e de uma forma de tal maneira brilhante que foram capazes não só de furar a bolha do wrestling como também de marcar gerações que nem as viram lutar.


Hulk Hogan, com a sua heroica excentricidade.
Andre The Giant, com a sua incomparável imponência.
Undertaker, com a sua macabra espetacularidade.
The Rock, com a sua contagiante eletricidade.
Stone Cold Steve Austin, com a sua desafiante rebeldia.
Bray Wyatt, com a sua inimitável criatividade.





Mas no meio de todos estes nomes, há um que está a faltar e que tem não só um lugar mais do que garantido nesta lista, como, mesmo depois daquilo que vai acontecer hoje, continuará a estar no topo da lista de wrestlers favoritos de muitos fãs, novos e velhos, que ainda consomem o produto ou que já abandonaram o barco há muito: John Cena.



Dizer e escrever algo acerca de John Cena é uma tarefa fácil e, ao mesmo tempo, bastante complicada. Fácil porque há sempre muito a dizer quando um aparente desconhecido vindo do estado do Massachusetts chega, em trajes de quem acabou de sair do modo Create a Wrestler de um qualquer SmackDown vs RAW, dá um valente chapadão noutro dos maiores de sempre, fá-lo suar de tal maneira que acaba a merecer um louvor de outro que já naquela época era tido como outro desses maiores, e depois disso parte para conquistar dezassete campeonatos mundiais (e sabe-se lá que mais pelo meio) e realizar sonhos de crianças a lutar contra a crueldade da própria vida durante mais de vinte anos.




Difícil porque, como todos os grandes, John Cena está longe de ser um nome consensual. E está tudo bem com isso, quer dizer – nem mesmo nomes como Shawn Michaels, Hulk Hogan, Ric Flair ou até The Rock e Stone Cold foram tão consensuais assim, e no caso de The Rock eu até acredito que tenha sido necessário que ele desse o salto para Hollywood para lhe reconhecermos o mérito que, com toda a propriedade, acabou por conquistar. Mas quando entramos na discussão sobre quem é o melhor de sempre dentro da WWE, o nome de John Cena adquire contornos… peculiares, e julgo que não é difícil entendermos porquê.


Antes de ser o gigantone do wrestling mundial que sabemos que é, a WWE é uma empresa. E uma empresa, seja a WWE ou outra qualquer, precisa de atrair público, de gerar lucro e, consequentemente, de manter as contas em terrenos positivos.


Para que isso aconteça, é preciso haver alguém que a represente em contextos que extravasam o propósito dessa empresa. E, se nas empresas fora do wrestling isso se faz com uma mascote (que tem a função de representar o propósito da marca), no wrestling isso faz-se com alguém que seja minimamente íntegro, confiável, que – obviamente – faça a sua parte dentro do ringue, mas que depois seja capaz de a fazer também fora dele, dando uma imagem positiva da marca.



John Cena foi o escolhido para essa função, tal como o foi Hulk Hogan na década de oitenta e Steve Austin nos finais da de noventa, quando o mundo do wrestling estava em guerra de audiências e o produto atingia expoentes nunca antes vistos nem pensados.


John Cena foi o escolhido, mas podia muito bem não o ter sido. Porque, pese embora tenha tido o privilégio – sim, porque olhando para trás, é sem dúvida um privilégio – de despontar na mesma classe da OVW onde estiveram Batista, Brock Lesnar e Randy Orton – com quem aliás protagonizou uma das feuds mais marcantes do final dos anos 2000, e para mim uma das melhores feuds de sempre da História da empresa – o jovem Cena não estava a conseguir colher o respeito quer do público, quer dos companheiros de balneário. Mas, como em todas as vezes que fez com que elevasse uma feud contra novatos claramente merecedores do estrelato, foi o microfone a salvá-lo. Diss tracks acerca dos colegas despertaram a atenção de Stephanie McMahon, que viu em John Cena potencial para algo mais. E assim nasceu o Doctor of Thuganomics: O início de uma bela e marcante aventura.





Na análise a esta grande aventura que durou 23 anos, há um elemento que define John Cena: Popularidade. John Cena, goste-se ou não se goste dele, foi sempre um wrestler popular porque conseguiu suscitar sempre reações do público. Mas John Cena foi também responsável por consolidar, dentro do wrestling, que o conceito de popular não se restringe apenas ao círculo quadrado.


O conceito de popular é tão raro e indefinido que pouquíssimas pessoas o conseguem ser – e a maioria delas acaba por sê-lo, muitas vezes, pelos piores motivos. Corriqueiramente falando, dir-se-ia que o cocktail necessário para a popularidade consistiria numa mistura saudável de autenticidade, frontalidade, comunicação e generosidade, qualidades que, com a experiência da vida, seríamos capazes de moldar e ajustar à nossa própria personalidade.


Ora, nós não conhecemos o John Cena suficientemente bem para perceber se este cocktail se aplica a ele. O que nós conhecemos vem da forma como ele se apresenta através da programação da WWE, e a partir daí tentamos formular a nossa opinião.


Mas eu diria que uma das grandes “chaves” para a popularidade de John Cena – dentro e fora do wrestling – consistiu em duas coisas: Primeiro, a capacidade de se adaptar e de prosperar fora do wrestling; segundo, a capacidade de abraçar com naturalidade a reação do público, sem nunca levantar grandes ondas sobre isso.


Para conseguirmos analisar este primeiro ponto temos de, obrigatoriamente, saltar da esfera do wrestling para a esfera artística e da cultura pop, porque são essas duas esferas que nos vão permitir ter uma métrica do quão popular foi John Cena – sobretudo na primeira década de 2000, quando o consumo do wrestling estava mais em alta até em países onde a cultura de wrestling era quase nula.


Para além de já ter interpretado a sua primeira theme song, Basic Thuganomics, em 2005, logo após ter sido elevado à dignidade de porta-estandarte da WWE, John Cena lançou aquilo que podemos considerar como a materialização dos seus primeiros três anos de carreira: Um álbum de rap, produzido e gravado em conjunto com o seu primo, o rapper Trademarc (Marc Predka), de onde saiu, aliás, a sua icónica theme song. O álbum, apropriadamente intitulado The Time Is Now, pese embora não tenha sido um sucesso intemporal, portou-se bastante bem nas tabelas, alcançando o décimo quinto lugar na Billboard 200 e o 103º lugar na UK Albums Chart.




Quanto à questão da reação do público, como eu dizia ainda há pouco, John Cena foi o responsável por consolidar o facto de que a popularidade de um wrestler não se restringe tão somente ao que se passa em ringue. Porra, se precisam de um único exemplo, John Cena fez com que um simples gesto de abanar a mão à frente da cara se tornasse símbolo de uma geração. 



John Cena fez com que toda a gente, mesmo aqueles que não apreciam esta arte, comprasse merch dele pura e simplesmente porque é o John Cena. John Cena levava todas as semanas com apupos e encarava isso com a maior naturalidade possível, porque é tudo parte da indústria, é tudo parte do espetáculo que é o wrestling. Portanto pode dizer-se que John Cena não foi apenas mestre no que fez dentro, foi também naquilo que fez fora: Raros são os wrestlers que conseguem colocar o público a imitá-los, gesto por gesto.


E é por isso que eu gostava de deixar uma palavra à WWE: John Cena estava disposto a fazer mais de duzentas datas, tendo o ano praticamente preenchido com wrestling. Vocês prometeram-lhe apenas 36, e em metade dessas 36, obrigaram-no a fazer um heel turn inconsequente não porque fosse uma decisão que sabiam que ia dar fruto, mas porque queriam números, visualizações, likes.





Passados seis meses, deram-lhe um face turn do nada, e mascararam isso com combates contra AJ Styles, Cody Rhodes e Dominik Mysterio, como se seis meses em grande fossem suficientes para apagar o fiasco da primeira metade do ano. Aquilo que vocês fizeram foi o maior insulto que dirigiram a uma lenda vossa desde que fizeram o Undertaker perder duas vezes na WrestleMania num espaço de três anos.


Mas enfim, chegou o dia. Chegou o dia e, honestamente, isso agora pouco ou nada interessa. Chegou o dia em que a última porta da nossa infância se vai fechar definitivamente. Chegou o dia em que muitos de nós vão chorar baba e ranho pela primeira vez em anos.


E eu sei que muitos não vão entender. Sei que muitos se vão resguardar no facto de que as pessoas “vêm e vão”. Mas John Cena não é só uma pessoa que vem e que vai. Ver John Cena dar por terminado o seu percurso vai doer tanto como o inevitável momento em que veremos Ronaldo e Messi fazer o mesmo.


Não vos pedimos que entendam o que sentimos. Nem tão pouco vos pedimos que chorem connosco. Pedimos-vos apenas – e isso sei que serão capazes de fazer – que entendam que isto é para nós como um processo de luto. Que não é fácil ver uma pessoa que percorreu connosco as fases mais sensíveis da nossa infância e adolescência desaparecer do nosso ecrã, pelo menos de forma semanal. Se até à madrugada de amanhã ouvirem falar na despedida de John Cena como uma “morte em vida”, não se admirem – é tudo isso e talvez muito mais.


Quanto a ti, John, meu rapaz e nosso irmão, sei que falo por todos nós quando te peço desculpa. Desculpa se alguma vez não te entendemos e fomos ingratos contigo. Desculpa se alguma vez te desprezamos ou subestimamos. Não era a nossa intenção. Só achamos que ias durar para sempre.


Mas nada dura para sempre, sabemos bem. Só há dias em que isso cala um pouco mais fundo dentro de nós.


Obrigado, mil vezes obrigado, John Cena. Por tudo. Por tudo e mais um pouco.


Até para a semana, pessoal!!


Com tecnologia do Blogger.