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Lucas Headquarters #205 – Sem vergonha!


Perdoem-me uma aparente frieza ou rudeza no início de mais uma edição de “Lucas Headquarters” (à qual vos dou, naturalmente, as boas vindas, minhas comadres e meus compadres) mas hoje vou direto ao assunto.


Ser líder de uma indústria tem as suas vantagens e as suas desvantagens, como tudo na vida. Com esse posto vêm privilégios, vêm benesses, vêm abébias que só podem existir com esse estatuto. Vem um certo “escudo protetor”, que serve para desculpar tudo e mais alguma coisa que haja de potencialmente polémico, sobretudo porque esse posto de líder se cristalizou no tempo, as ações que esse posto impulsionou perpetuaram-se de tal forma que hoje em dia já não se consegue imaginar essa indústria sem esse líder, sem essa figura que coloca as coisas na ordem, que gere tudo com mão de ferro, mesmo que, por vezes, de maneira duvidosa.


A WWE sempre foi, é e será a líder da indústria do wrestling. É um facto e não deixará de o ser, pelo que não deveria custar nada reconhecê-lo. Por vários motivos: Porque, mesmo que agora consumamos menos o seu produto (e todos nós temos razões para o fazer) todos temos uma ligação emocional – diria até que quase umbilical – à empresa. Não vale a pena escondermo-nos atrás de discursos tribalistas, de apelidarmos a empresa de “fed” e os seus fãs de “fed stans” e darmos a essas expressões um sentido pejorativo (que não tem, lamento dizer, e quem acha que sim e usa esses termos com a mesma frequência e leviandade de outros quaisquer está só a ser cringe).


Essa ligação explica-se muito simplesmente: Foi com a WWE que 99% dos que passam por este site todos os dias e todas as semanas começaram a ver wrestling, num dia aleatório do calendário, há mais ou menos tempo. Sem a WWE, muitos de nós não conheceríamos este desporto e esta arte como conhecemos hoje. 


Sem a WWE nós nunca aprenderíamos a admirar nomes como Hulk Hogan (outro que tem estado no centro da polémica, sobretudo depois da sua morte – uma prova de que a morte nem sempre limpa a reputação às pessoas, talvez), Andre The Giant, Randy Savage, Undertaker, Ric Flair, Shawn Michaels, The Rock, Steve Austin, John Cena, Batista, Randy Orton e outros tantos, esses que foram, para muitos, os primeiros heróis da nossa infância/adolescência.



Por isso, volto a frisar: Não deveria custar nada reconhecer a WWE como líder da indústria do wrestling. Não deveria, mas a verdade é que custa, e custa cada vez mais.


Isto pode parecer uma pergunta meio estúpida, ou pode até dar a sensação que vos estou a tentar dar alguma lição de moral, quando, em boa verdade, não são vocês que têm culpa: O que é que faz um chefe? E o que é que faz um líder?


Um chefe chefia. Um líder, lidera. Chefiar é diferente de liderar.


Chefiar é fazer as coisas com mão de ferro. É tomar decisões e ignorar consequências, muitas vezes pensando só no proveito que pode ser tirado dessas decisões. Chefiar é confiar nos nossos instintos, quando sabemos perfeitamente que, muitas vezes, são eles a primeira coisa a falhar. Chefiar é colocarmo-nos no patamar dos Deuses, quando na verdade somos só feitos de carne.


Liderar é fazer as coisas pensando naqueles que nos põem nesse posto. É tomar decisões e avaliar riscos e recompensas, prós e contras. É reconhecer que a posição de líder não é um pedestal que nos está predestinado logo à nascença, muito embora caiamos na tentação de a certa altura, pensar que sim, que aquele cargo de chefia foi mesmo feito à nossa medida. É reconhecer que somos humanos, e que mesmo sendo líderes, temos direito à falha, assim como os outros que hierarquicamente estão abaixo de nós têm direito à razão, as vezes que forem precisas.


A WWE começou por ser a líder da indústria do wrestling. Há quarenta anos trouxe algo verdadeiramente inovador, trouxe uma maneira de contar histórias que ultrapassava todos os limites do racional e que fazia sonhar, que fazia imaginar o que aconteceria a seguir.


A WWE começou por estar na vanguarda dessa mesma indústria, introduzindo, para além de histórias, personagens que caíram no goto do público e que ainda hoje são recordadas por quem, quando criança, teve contacto com o wrestling mas hoje já arruma tudo isso nas gavetas do passado.


O próprio Hulk Hogan, por exemplo. O primeiro wrestler a transcender verdadeiramente a barreira do wrestling e a entrar pela cultura pop adentro, tanto que hoje ainda muita gente se recorda de muitos dos seus filmes. O mesmo sucedeu com Undertaker, The Rock, John Cena. A WWE trouxe supostos super-heróis para o mundo real, para que toda a gente visse para lá dessa bolha. A WWE começou por ser líder.



Mas todo o líder tem a propensão para se tornar chefe se não souber lidar com a pressão, com o escrutínio que vem com esse cargo. E isso foi acontecendo com a WWE, que nunca soube lidar com as críticas, que nunca soube lidar com os seus momentos mais baixos, mas sobretudo que nunca soube lidar com a realidade: As indústrias não se monopolizam. Nunca.


Comprou a WCW, supostamente para salvá-la da valente alhada em que se metera (e que já lhes estava a custar muito dinheiro), mas destratou os wrestlers que a puseram no mapa. Comprou a ECW, que revolucionou o mundo do wrestling com um estilo mais brutal e agressivo, que revelou ao mundo nomes como Sabu, Rob van Dam, Dudley Boyz, Rhyno, Paul Heyman… mas que, mesmo com tanta gente a tentar salvá-la, não se conseguiu salvar a si mesma, e entrou em bancarrota.




E, com estas compras todas, a WWE foi-se tornando cada vez mais chefe, e cada vez menos líder. E como isto é uma bola de neve, com as tentativas de monopolização vêm as polémicas. Nos anos 90, já duas tinham abanado os pilares do império McMahon: Em 1992, uma primeira acusação de abuso sexual contra a primeira mulher a desempenhar o papel de árbitro na WWF, Rita Marie; e em 1994, o rebentar de um escândalo de distribuição de anabolizantes, no qual McMahon foi absolvido por falta de provas.


Até que chegamos a 2022. Novas acusações de abuso sexual começam a ressurgir e, em Julho, Vince McMahon renuncia pela primeira vez. Voltaria em Janeiro de 2023, numa tentativa desesperada de recuperar o poder perdido, mas acaba por ser tramado pelo caso de Janel Grant, cujas acusações surgem um ano depois. E é aqui que entra também Brock Lesnar.


Não é segredo para ninguém que Brock Lesnar sempre foi um dos meninos queridos de Vince McMahon (Undertaker, obviamente, foi o outro). Lesnar é um dos indiciados no caso que Janel Grant quer levar por diante, e que, desde que o caso de Janel Grant veio a público, foi afastado compulsivamente da programação da empresa. Isto até ao passado fim-de-semana.




E é aqui que se centra a minha reflexão de hoje: Como é que a WWE acha que nós, os fãs, iríamos reagir a um regresso do Brock? Onde é que a empresa pensa que o público vive? Numa bolha?


É claro que a reação ia ser aquela que se esperava! Porque, hoje em dia – e a WWE parece esquecer-se disto, pelo menos quando lhe convém esquecer – o público tudo vê, tudo sabe, tudo escrutina. Mesmo que Brock Lesnar acabe inocentado desta história (coisa que duvido que aconteça), só o facto de ter estado indiciado num escândalo desta ordem fará com que os fãs nunca mais olhem para ele da mesma forma, fará com que o escrutínio sobre ele – e, consequentemente, sobre a empresa, também aumente, e, pior, muitos daqueles que estavam a voltar a consumir o produto da WWE acabarão por afastar-se novamente.


E agora poderão dizer “ah, mas o regresso do Brock foi um pedido expresso do John Cena”. Maltinha, eu compreendo a importância que o John Cena teve no estabelecimento do Brock como um heel de topo e vice-versa. Aquele combate que ambos tiveram no Summerslam em 2014, para o bem ou para o mal, ficará na História. É importante entendermos isso.





Mas o que está aqui em causa é muito maior do que apenas um regresso. Como se sentem as mulheres do roster da WWE ao saberem que, há cerca de um mês, a empresa organizou um evento cem por cento dedicado a elas, e no espaço de mais de trinta dias faz voltar alguém fortemente indiciado por abuso sexual?


Como se sentirão todas aquelas mulheres que foram vítimas de Vince McMahon, sabendo que um dos seus principais “meninos bonitos” voltou à ribalta?


Mais uma vez: Dada a História que os une a ambos, eu entendo que John Cena tenha feito força para um regresso do Brock, quando está a quatro meses de se despedir dos ringues. Mas, por muita importância que John Cena tenha – e definitivamente tem – para o wrestling e para a WWE em particular, o bom-nome da empresa tem sempre de ficar acima dos caprichos de qualquer wrestler, mesmo que esse wrestler tenha recentemente quebrado o recorde de Campeonatos Mundiais e tenha adquirido legitimamente o direito a ser chamado de “G.O.A.T.” (pelo menos, dentro do Universo da WWE).



No fundo, o regresso de Brock Lesnar no meio deste escândalo todo é o reconhecimento de que aquilo que a WWE fez pelo wrestling feminino (se é que alguma vez fizeram alguma coisa) nunca existiu; é o reconhecimento de que o afastamento compulsivo de Brock Lesnar em Janeiro de 2024 só aconteceu não para punir o próprio Lesnar e salvaguardar o bom nome da empresa mas apenas para manter Lesnar afastado até que a tormenta passasse; e é o reconhecimento, já materializado noutros contextos, de que a manutenção de um ambiente de igualdade e de segurança no wrestling pouco lhes importa, desde que o dinheiro lhes caia na carteira ao fim do mês.


Eu pensei bastante antes de escrever este artigo. Pensei se deveria lança-lo, ou deixá-lo apenas no papel. Mas há princípios dos quais eu não posso abdicar, como fã de wrestling mas, acima de tudo, como pessoa e ser humano, também ele com as suas fragilidades e limitações.


Pensei também em tomar a decisão radical de deixar de falar da WWE aqui nos Headquarters. Não vou tomar essa decisão. Primeiro, porque não beneficia o artigo a médio-longo prazo, e depois, porque é sempre importante que haja alguém a falar de WWE, mais não seja para fazer o que eu fiz aqui hoje, que foi passar para palavras os pensamentos de milhares de fãs e chamar a atenção para a vergonha a que assistimos no passado fim-de-semana.


Peço desculpa se o artigo desta semana defraudou as vossas expectativas de alguma forma. Prometo que, para a semana, vou voltar com a programação habitual. Como vos disse, simplesmente há coisas que não posso deixar passar em branco, como fã e como pessoa e ser humano.


Obrigado a todos por terem lido, e vemo-nos no próximo fim-de-semana. Peace and love!

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