Lucas Headquarters #104 – Bray Wyatt (1987-2023): Quando todos os mundos cabem num só
(nota prévia: Podia falar também na morte de Terry Funk,
ocorrida exatas 24 horas antes desta. Mas escolhi falar na do Bray Wyatt por
ser aquele wrestler que mais gente teve oportunidade de apreciar. Condolências
à família e amigos de Terry Funk. Paz à sua alma).
Quinta-feira, 24 de Agosto de 2023. Faltam dez minutos para a
meia-noite. Depois de contar a um dos meus amigos uma infeliz situação
que me aconteceu dentro do meu núcleo familiar, pouso o telemóvel (já
alimentado pela corrente) e preparo-me para dormir, pois no dia seguinte era
dia de trabalho.
Ato contínuo, assim que pouso o telemóvel na mesa de
cabeceira recebo uma chamada desse mesmo amigo meu. Havia de vir aí uma notícia
bombástica, ele que quase sempre usa as chamadas quando tem novidades de
situações correntes ou quando me quer dar esse tipo de notícias. Atendo
rapidamente e oiço, do outro lado da linha, a voz em choque que me diz:
“Mano… o Bray Wyatt
morreu”.
Segue-se o silêncio. Um longo, surpreendente, chocante e
constrangedor silêncio. A verdade é que já sabíamos – e isto foi amplamente
noticiado – que o agora falecido Bray não andava bem de saúde desde que
terminou aquela desinteressante feud que
teve com o LA Knight e que cobriu todo o Natal e Ano Novo até ao Royal Rumble.
Mas o pior já parecia ter passado, tanto que se disse e se escreveu que Bray
Wyatt tinha sido declarado apto para lutar e imediatamente começou a
especulação e o jogo de adivinhas para ver em que data é que havia de voltar.
E depois começamos nós, ainda cansados do choque, a tentar
juntar as peças, a tentar perceber o que é que foi que terá levado a vida de
Bray Wyatt a ter um fim tão prematuro. Será que a doença dele era mais grave do
que se pensava? Será que isso o teria levado a suicidar-se para evitar fazer
sofrer os seus durante todo um longo processo?
Nenhum de nós sabia bem o que dizer, o que pensar, como
encaixar as peças desse puzzle. Apenas
éramos capazes de nos deter no fator que muitas vezes nos faz lamentar mais o
impacto da partida – a idade. Bray Wyatt partiu aos 36 anos, naquele que, não
tivessem sido as vicissitudes de uma carreira que foi muitas vezes “on again, off again”, seria o seu auge
enquanto wrestler e onde o seu pico
como agente do entretenimento de tantos que passam por este site seria
atingido.
Segue-se mais um período de ensurdecedor silêncio, meditando,
talvez, no percurso que durou treze anos e que passou por várias fases – Husky
Harris, Eater of Worlds, The Fiend e
este retrato mais fiel da sua realidade pessoal, embora sempre pintado pelas
cores de alguém que criava mundos dignos de um qualquer thriller psicológico que tinha o potencial de se tornar num sucesso
de bilheteira sem precedentes.
E isso fez-me pensar no seguinte: Eu tinha 13, quase 14 anos
quando comecei a acompanhar o percurso do Bray Wyatt (a fase do Husky Harris
vem numa altura em que eu, não me tendo desligado do wrestling por completo, andava um pouco mais afastado e a explorar
outros interesses que começavam a surgir). Lembro-me perfeitamente. Foi no
Verão de 2013, numa altura em que, paralelamente, a storyline que havia de dar início à ascensão de Bryan Danielson (fka Daniel Bryan) se começava a
desenvolver.
Durante semanas vi aquelas estranhas vignettes na televisão e ouvia-o falar com a eloquência de quem,
tendo apenas 26 anos na altura, já sabia de cor e salteado o duro preço que a
vida muitas vezes cobra. Ao lado dele, os seus dois filhos, Erick Rowan e Luke Harper (aka Brodie Lee), também já falecido. O primeiro fazia-se acompanhar
de uma máscara de cordeiro (que depois tomou várias formas ao longo dos anos)
que lhe dava uma aura… estranhíssima, no mínimo.
De entre os três, e aos olhos de um miúdo de 13 anos acabado
de entrar na adolescência, o Bray Wyatt parecia ser o único homem com alguma
dignidade. Os outros dois lutavam ou com macacões quase inspirados nos Slipknot
(Erick Rowan) ou, no caso de Luke Harper, com a mesma roupa que vestiam há
quinze, vinte anos, com as cores já desbotadas e uma perpétua mancha de suor no
meio da camisola de alças que cobria um peito imensamente peludo, que servia de
complemento a um imenso barbaçal que se estendia abaixo do queixo.
Vi também a sua estreia no Main Roster e acompanhei a sua primeira feud com o Kane, cujo único objetivo na altura já era abrir as portas e estender a passadeira para a próxima geração de novos talentos. Lembro-me, como se fosse hoje, do imenso pop que o público dedicou quando Bray Wyatt surge, ladeado pelos seus dois comparsas, guiado pela lanterna que se tornou indissociável de qualquer uma das suas (re)-encarnações.
No início não achava grande piada à sua gimmick, talvez por considerar que todo aquele universo fosse uma
cópia PG de muitas das reinvenções do Undertaker criadas por Mark Calaway. É
pouco depois de tudo isso que surge uma promo que tem em mim um impacto enorme.
Na altura o impacto não era tão grande assim, porque a minha vida na altura era
mais pacata e vivida com menos pressa, mas à medida que fui passando por
situações interpessoais menos boas na vida e que me levaram, a bem dizer, ao
fundo do poço, esta promo ganha um
significado pessoal cada vez maior: Miss
Teacher Lady.
“Todas as noites, nós
deitamos as nossas cabeças para sonhar, e é aí que as nossas mentes começam a
funcionar. Começamo-nos a lembrar das coisas, dessas pequenas coisas, desses
ultrajes que nos aconteceram durante a vida. Mas nos nossos sonhos, nós somos
super-heróis. E nos nossos sonhos, conseguimos resolver tudo (…). E assim de
repente, acordamos. E aí a realidade começa a instalar-se. Então nós vamos até
ao espelho, olhamo-nos e lembramo-nos de que não somos super-heróis, e não
conseguimos resolver tudo (…).”
E este pequeno parágrafo que começa esta promo comprova
várias coisas que fazem de Bray Wyatt mais do que um wrestler, mais do que um simples agente do entretenimento coletivo,
como eu há pouco já tinha dito.
Na manhã de ontem, quando eu estava a dar a volta matinal
pelo X (fka Twitter), dei com um tweet de uma fã brasileira de wrestling chamada Gabriela Severo, que
resume perfeitamente aquilo que é a essência deste parágrafo e aquilo que fez
de Bray Wyatt um orador desconcertante, mas verdadeiro. E esta é uma ideia que
faz todo o sentido voltar a referir, até porque se pode aplicar em muitos
contextos.
É muito esquisita a sensação quando percebemos que os wrestlers que acompanhamos, e muitas vezes idealizamos quase como super heróis, são tão frágeis quanto a gente.
— roronoa zoro ⚔️ (@gabu_moon) August 24, 2023
É de partir o coração quando alguém tão jovem morre. Parece tão errado.
Muitos de nós, quando entrámos neste mundo fantástico que é o wrestling, éramos simples e inocentes crianças (quando me abriram as portas desse mundo eu tinha sete anos, dali a um par de meses completaria oito). E nós, por não sabermos (ainda) o que está por detrás da indústria, concebemos os wrestlers como sendo super-heróis, pessoas que são capazes de dar conta de tudo, de perseverar perante todas as adversidades que lhes são colocadas, que correm riscos, que se veem entre a espada e a parede, mas que prevalecem no final. E a verdade é que não é bem assim.
Por detrás destes wrestlers,
existem pessoas que também têm problemas de saúde. Existe gente com a vida por
um fio de prumo. O que nos custa a acreditar – e isso sim, é a razão para todo
o choque que eu relatava no início, na primeira pessoa - é que Bray Wyatt partiu
de forma repentina. Jovem, no auge da sua carreira, com tanto para dar ao wrestling, e de forma repentina. E é aí
que a parte inicial desta promo se encaixa.
E depois há outra coisa. Nós recebemos os wrestlers em nossa casa todos os dias, a
todas as horas, nos momentos bons e nos difíceis, nas horas tristes e alegres.
Simplesmente damos-lhes as chaves de nossa casa quando, a uma certa hora do
dia, mudamos a TV para um canal onde passa um programa de wrestling. E fazemos isto durante anos e anos, às vezes para o
resto das nossas vidas.
Nós, com a paixão que temos por este mundo louco, colocamos
muitas vezes os wrestlers num patamar
semelhante a um membro da família. São eles o nosso escapismo nos dias muitas
vezes duros. E daí o choque desta morte. Porque foi um wrestler que muitos de nós… “apadrinhámos”, à falta de um melhor
termo. Muitos de nós acompanhámos o percurso dele desde a fase do Husky Harris
– embora a esmagadora maioria tenha começado no Eater of Worlds – até aqui. Ele
foi uma constante. Ele cumpriu aquilo a que tantas vezes, indiretamente, se
propunha: Capturar a imaginação de tantos quantos o viram lutar.
Quando todos os mundos
cabem num só
Quem, como eu, “apadrinhou” o Bray Wyatt e o viu nestas três
fases (quatro, contando com a do Husky) percebeu que ele não era um devorador de mundos (como tantas vezes
se anunciava), mas vocês já pararam para pensar:
“E se Bray Wyatt
estivesse para o wrestling como Fernando Pessoa para a literatura?”
Bem sei que é sacrilégio colocar o maior homem das letras
portuguesas de todos os tempos (a seguir a Camões) no mesmo patamar de alguém
que, se quisermos entrar por esse caminho, vai-se a ver e só deu um par de
murros e pontapés num gajo qualquer.
Mas pensem nisto desta forma: Pessoa criava os chamados heterónimos – personalidades que, tendo
origem nele próprio (ortónimo), se assumem como pessoas completamente
distintas, com biografia, percursos de vida e traços de personalidade vincados
que ajudam, muitas vezes, a definir as linhas em que se escrevem os seus poemas.
Bray Wyatt, no seu papel de wrestler, também teve uma forma de trabalhar semelhante à do mais universal poeta português. Não criou heterónimos e nem tão pouco semi-heterónimos, porque todas as personagens, todas as gimmicks que idealizava eram de natureza circular – começavam no Bray Wyatt e terminavam no Bray Wyatt. Mas todas elas tinham pormenores que se relacionavam intimamente com o seu passado.
Por exemplo, na gimmick do The Fiend, quando Bray Wyatt interpretava o seu lado “bom” (o de um
apresentador de programas de TV para crianças), logo no segundo episódio
aparece a pintar o quadro que representa o momento em que Randy Orton pegou
fogo ao Wyatt Compound, no caminho
para a Wrestlemania 33 em 2017. Logo nesse mesmo episódio introduz o Ramblin’ Rabbit, que representa o modo
como as suas promos enquanto Eater of Worlds se tornavam, muitas vezes, vagas e
inconclusivas (e que por isso vai sempre acabar por ser “morto” de várias
formas).
Daí a questão de todos os mundos que cabem num só. Porque
Bray Wyatt assumiu uma só personagem, a qual foi reinventando e explorando de
uma maneira tão psicologicamente distinta da outra que dava a sensação de serem
diferentes. Mas havia sempre um ponto de união.
À medida que o artigo desta semana caminha para o fim (e,
assim como ele, provavelmente caminham para o fim todas as vezes que aqui
falamos do Bray), aquilo que fica, pelo menos na minha cabeça, é a imagem de
alguém que, não sendo um verdadeiro wrestler,
era um wrestler verdadeiro.
"He's got the whole wide world in his hands
He's got the whole world in his hands
He's got the whole world in his hands".