Lucas Headquarters #163 – Há dragões cujo fogo nunca se apagará
(e assim sem
dar por isso, posso ter começado a próxima campanha de marketing do FC
Porto, e nem portista sou).
O calendário do mundo do wrestling é marcado por constantes
efemérides e datas comemorativas, sendo que estas servem para que a História deste
desporto (e das companhias que lhe dão cor) se vá construindo aos poucos.
Vale, por isso, a pena apontar algumas das mais importantes
efemérides e datas históricas que contribuíram para que o wrestling
fosse, de certa forma, o que é hoje: 31 de Março de 1985 marca a data da
realização da primeira WrestleMania de sempre; 22 de Novembro de 1990 marca a data
da estreia em televisão daquele que é por muitos considerado o melhor e mais
marcante wrestler de todos os tempos (óbvio que estou a falar do
Undertaker); 25 de Abril de 1992 marca a data da fundação daquilo que viria a
ser a ECW; 4 de Setembro de 1995 é geralmente considerado como o primeiro dia
das Monday Night Wars entre a WWE e a ECW; 13 de Novembro de 2005 é tido
como um dos dias mais tristes de sempre no wrestling, já que, nesse dia,
se chorou a morte do lendário Eddie Guerrero; 24 de Junho de 2007 marca o ponto
de viragem na programação da WWE com a trágica morte de Chris Benoit; a 25 de
Maio de 2019 chega até nós a AEW e assim por diante, até aos dias de hoje.
O que quero dizer com o realçar de todas estas datas é que
todas elas dizem respeito a diferentes empresas, logo, apesar de algumas terem
ocorrido na mesma época na linha temporal (a estreia em televisão do Undertaker,
o início da ECW, o início das Monday Night Wars, as mortes de Eddie
Guerrero e de Chris Benoit…) os contextos em que se inserem são ligeiramente
diferentes, e as consequências que tiveram também são ligeiramente distintas.
E um exemplo disso são precisamente essas duas últimas datas
históricas. Se calhar, com a morte do Eddie, houve muito mais gente a querer
tornar-se wrestler (um caso bem conhecido é o de Mercedes Moné, fã
assumida do Eddie Guerrero, que esteve entre o público no RAW imediatamente a
seguir à sua morte mas que não se apercebeu de tal acontecimento até,
praticamente, ao final do show. Isto para não falar das dezenas (talvez
centenas) de wrestlers – de ascendência mexicana, mas não só – que passaram
a utilizar muitas das suas moves em tributo e homenagem a ele, seja o Frog
Splash ou os Three Amigos.
Isto para dizer que as efemérides ou datas históricas no wrestling
não têm apenas a capacidade de servir de tinta permanente para escrever a
sua história, têm também a capacidade de a construir, para o bem e para o mal.
Há uma semana assistimos ao surgimento de uma outra efeméride
que promete marcar indelevelmente a História do wrestling. Felizmente
para nós, mais para o bem do que para o mal, pelo que vos peço que, ao lerem
este artigo, não olhem para ele como um artigo de tristeza ou despedida, antes
como um artigo de alegria, celebração, de homenagem positiva e grata, de
reconhecimento por tudo aquilo a que assistimos.
Essa efeméride é uma efeméride que vem às custas de um WrestleDream
bem mais fraco do que aquilo que se esperava, pelo que este era um dos poucos,
senão mesmo o único ponto de interesse que havia nesse PPV, por todos os
motivos e mais alguns. E tentando não me desviar muito do assunto, mas já desviando:
Não compreendo como é que há esta necessidade de fazer tudo “preto” e “branco”,
nunca cinzento. E eu já falei disto aqui muitas vezes, e de muitas formas, em
todos os contextos, quer seja a nível de tribalismo, quer seja abordando outros
tópicos, mas se há coisa onde isso se verifica mais, para além do que queremos
para os wrestlers, é a nível dos PPV’s, PLE’s o que lhes queiram chamar.
Se por um lado, é compreensível que, ao longo dos últimos
tempos, a norma tenha sempre sido a que, entregando a WWE um bom PLE, a AEW
consegue entregar um ainda melhor PPV, isso não invalida automaticamente que a
AEW não possa, de vez em quando, falhar nos PPV’s que entrega. E podia falar
aqui na crise de identidade que estão a atravessar (isso ficará para uma outra
altura), mas o que interessa aqui destacar é isto: Se o Bad Blood não foi bom,
o WrestleDream também não foi melhor.
E com isto retomo o ponto que estava a fazer antes de tomar
este desvio. Tirando talvez a Triple Threat que opôs Ricochet, Konosuke
Takeshita e Will Ospreay (Match of the Year, meus amigos, Match of the
Year), o único ponto de interesse que havia era precisamente este. E,
repare-se, até este não foi completamente bem executado, mas já lá vamos.
Bryan Danielson. Quando se fala de Bryan Danielson é impossível não fazer
automaticamente a troca para Daniel Bryan. Aliás, acredito até que quem vê a
All Elite desde o seu começo ainda faz, instintivamente, essa truncação.
Mas quando se fala de Bryan Danielson fala-se, sobretudo, num
wrestler que personifica aquilo que é o conceito de “conto de fadas”. Geralmente,
quando concebemos uma história ou nos referimos a algo como sendo um conto de
fadas, temos sempre em mente uma história ou acontecimento que envolve alguém em
quem ninguém acredita minimamente. Alguém que, por muito capaz que seja e por
muito potencial que tenha, não merece sequer dez cêntimos de aposta.
Bryan Danielson é, de certa forma, a personificação desse
protagonista. Não é o mais vistoso wrestler à face da terra em termos
físicos (1,78 m) mas o wrestling já há muito que deixou de ser um
desporto para “homens de barba rija”, e se assim o é, Bryan Danielson é hoje
uma das grandes razões pelas quais esse estereótipo foi sendo lentamente abandonado.
Mas não só Bryan Danielson contribuiu para que o estereótipo
ligado às credenciais corporais dos wrestlers fosse sendo lentamente
descartado, como também nos atraiu a atenção para wrestlers de outro
estilo. Zack Sabre Jr., por exemplo: Também não é o mais intimidante dos wrestlers,
poderá não ser aquele em quem toda a gente põe imediatamente os olhos ou quem a
nossa mente vai automaticamente buscar quando ouvimos as primeiras notas de uma
theme song, mas é um wrestler que, para além daquilo que sabe
fazer em ringue (que é bastante, e que o coloca como um dos grandes wrestlers
da sua geração) também beneficia das portas que Bryan Danielson acabou por
abrir.
E essa é, talvez, a maior vitória de Bryan Danielson: Ele pôs
os olhos em wrestlers mais técnicos quando ninguém queria saber de wrestlers
mais técnicos. Ele ensinou-nos que não importava o tamanho, a aura, o Main
Event appeal, ou que, pelo menos, isso não era tudo aquilo que faz um wrestler
bom. O segredo está na skill, naquilo que se faz dentro do ringue,
porque isso é que é, efetivamente, a medida de um grande wrestler.
Despedida que sabe a pouco
Apesar de toda a emoção e de todos os agradecimentos que o
fim da carreira de Bryan Danielson gerou (e bem merecidos são eles), não posso
deixar de sentir que, de todos os combates que Danielson e Moxley já tiveram, este
foi, sem dúvida, o mais insosso. Tirando os primeiros cinco minutos, em que a campainha
ainda nem sequer tinha soou e a “Final Countdown” tocou, trazendo à memória o
melhor filme de ação que alguma vez vimos na nossa vida, a ação não nos
apresentou nada de extraordinário, e o final pareceu-me muito precipitado.
Tudo bem, a gimmick que Jon Moxley encarna não é
propriamente a de alguém que se preocupe muito com o modo como as coisas
funcionam e muitos poderão dizer que, nesse sentido, o final do combate poderá
ter sido adequado. E esse raciocínio é um que eu até consigo aceitar.
A questão é que me parece que todos nós estávamos à espera de
um final que tivesse os mesmos níveis de catarse emocional do que opôs Shawn
Michaels a Ric Flair na WrestleMania 24, ou Undertaker a Triple H na
WrestleMania 28, ou até mesmo o que opôs Sting e Darby Allin aos Young Bucks. E
talvez isso envolvesse um final mais limpo, em que o combate fosse crescendo,
lentamente, até ao momento decisivo, onde a emoção estaria à flor da pele. E
nesse sentido acho que a AEW falhou, e muito. O público literalmente não estava
à espera de um final tão repentino, e houve, da parte de quem estava a ver, uma
reação bastante mais moderada que indica isso mesmo.
Será que Bryan Danielson voltará a
lutar?
Há aqui um detalhe que é essencial realçar: Bryan Danielson
está, na verdade, semi-retirado, o que quer dizer que ainda poderá
aparecer, daqui a algum tempo, em alguma storyline que a AEW tenha
desenhado para ele. Mas será que isso vai acontecer.
Na minha opinião, não. E as reações que vi após o
final do WrestleDream parecem estar em consonância com este meu ponto de vista.
Bryan Danielson tem um longo historial de lesões, sobretudo a
nível de concussões, e já pagou uma fatura pesada por isso. Para além disso, pode
ter que passar por nova operação num futuro não muito distante. E mesmo a nível
da própria mentalidade, Danielson parece encarar esta nova “reforma” com uma
paz de espírito naturalmente maior do que da primeira vez. O foco mudou de uma
forma pacífica e orgânica, e a incerteza fará com que não queira arriscar
demasiado. Eu acho que terá de acontecer algo muito especial, até mesmo único,
para que Bryan Danielson considere a hipótese de voltar ao ringue, daí que este
pareça verdadeiramente um fim de carreira, mais do que um fim de carreira part-time.
Há dragões cujo fogo nunca se apagará
Recuperemos o título do artigo. Não porque seja uma frase
feita, ou porque soe filosófica. Mas porque é a verdade. Bryan Danielson não
foi, não é, não será apenas um wrestler que abriu portas e quebrou
estereótipos. Até porque, nesse aspeto, há muitos que também já o fizeram, e
merecem igual crédito.
Bryan Danielson, o American Dragon, é um exemplo de
superação. No wrestling e na vida. As histórias que contou, aquela feud
que levou ao seu momento de glória na WrestleMania XXX há já dez anos, a
forma como, contra todas as probabilidades, voltou a fazer aquilo que sempre
fez melhor que muitos e o que teve que fazer para, depois disso, chegar a AEW
World Champion.
Nada foi por acaso, tudo tinha uma razão. Bryan Danielson gosta demasiado deste nosso mundinho para simplesmente passar incólume por ele, quando teve uma segunda oportunidade que a vida não dá a tanta gente assim. Bryan Danielson é a personificação do aproveitar cada oportunidade, viver cada dia como se fosse o último. Porque para ele, também já foi, em 2016 como é agora. A diferença é que, agora, não nos custa tanto aceitar porque também sabemos que nada que ele pudesse fazer a partir daquele dia seria melhor do que o simples prazer de o ver lutar. Há dragões cujo fogo nunca se apagará.
Obrigado,
Bryan Danielson!! YES!! YES!! YES!!
Até para a semana, malta!!